terça-feira, 23 de agosto de 2011

Escolheremos a graça ou a natureza? - A Árvore da Vida

MARCELO GLEISER



O filme "A Árvore da Vida" nos coloca entre o caminho da graça e da natureza; não temos de fazer essa escolha


NA SEMANA passada assisti ao filme "A Árvore da Vida", de Terrence Malick. Se existe um gênero de cinema dito metafísico, esse filme é um exemplo perfeito. Algumas das questões mais profundas que foram (e são) feitas no decorrer da história reaparecem aqui, em meio à tribulada vida de uma família de classe média americana da década de 1950.
Malick nos lembra que o sublime e o trágico usam vários disfarces, alternando cenas de beleza numa rua comum com cenas pesadas.
O tema central do filme é a perda e nossa relação com ela. Malick contrasta a fragilidade humana com o esplendor dramático da natureza, inserindo uma narrativa da criação que começa com o Big Bang, mostra estrelas nascendo em gigantescas e coloridas explosões, a própria Terra surgindo, o desenvolvimento de criaturas e plantas multicelulares, a era dos dinossauros, até chegarmos ao nascimento de Jack, o filho mais velho da família O'Brien.
Com isso, Malick nos insere no épico da criação, mostrando que a história cósmica é a nossa história.
As imagens e a música evocativa (Mahler, Brahms, Couperin, Berlioz, e o tema original de Alexandre Desplat) nos induzem a ver o Universo, a vida e a humanidade como manifestação de um Deus Spinoziano, em tudo e em todos, transcendente.
No decorrer do filme, testemunhamos vários tipos de perda. O'Brien e sua esposa têm três filhos. Jack é o pivô dramático do enredo, sofrendo constantemente da ira do pai frustrado, que se mescla com um afeto violento. O'Brien queria ter sido músico, mas acaba numa fábrica, talvez como engenheiro.
Fora a fúria paterna, Jack tem de lidar com a superioridade do irmão mais novo, R. L., que toca violão e desenha muito bem, além de ser mais bonito. Nos ciúmes e adoração que Jack sente pelo irmão, vemos a luta que todos temos com nossas limitações. Lembrei-me da angústia de Salieri ao se deparar com o gênio de Mozart em "Amadeus".
Já a mãe é uma criatura em constante êxtase beatífico, uma mística que ama a natureza com fervor religioso: "Ame a todos e a tudo. Ame cada folha, cada raio de luz".
A paz (relativa) familiar é destruída quando R. L., o filho, é morto no Vietnã aos 19 anos -algo que vemos no início do filme.
A narrativa vai e volta no tempo, e vemos Jack adulto (Sean Penn), dentro de um prédio moderno em Dallas que parece um sarcófago, olhando para fora e perguntando "Onde você está?" ao seu irmão e a Deus. O filme usa muita narração sussurrada, como se fossem preces. Malick transforma a sala de projeção em templo: o cinema sacro.
O filme nos coloca entre "o caminho da graça e o caminho da natureza". Graça no sentido cristão de generosidade, humildade e bondade, de uma força interna imune a todo o tipo de barreira, ancorada na nossa humanidade. Sem nós, a graça não existe. Já a natureza é indiferente, avança resolutamente, criando e destruindo sem um objetivo final. Nós, frágeis humanos, estamos tentando compreender o significado de nossas vidas. Uma morte prematura é indesculpável.
Não precisamos escolher entre a graça e a natureza. Existe uma terceira via, em que encontramos graça na natureza, não apenas através de sua beleza e cada folha e raio de luz, mas por meio da nossa profunda conexão com ela.
O que matou o pai, figurativamente, mesmo antes da morte do filho, foi ter se distanciado do sentido de graça, da conexão profunda com o que nos cerca, vivo ou não.
Espero que, das várias mensagens do filme de Malick, uma que perdure seja que graça e natureza constituem um todo indissolúvel.
Afinal, aqui estamos, criações cósmicas que somos, capazes de inventar o conceito de graça e de viver inspirados por ele. Dedico esse texto à minha amiga Ciça Guimarães.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2108201102.htm

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

CONTARDO CALLIGARIS - "A Árvore da Vida" e "Melancolia"



CONTARDO CALLIGARIS


Insegurança e narcisismo: queremos ser os únicos a "perceber" e a denunciar a falsidade do mundo



No sábado passado, assisti a dois filmes: "A Árvore da Vida", de Terrence Malick, e "Melancolia", de Lars von Trier.
Assistindo ao filme de Malick, pensei no meu professor de literatura no ginásio (acho que se chamava Massariello). Ele nos apresentou à poesia de Giacomo Leopardi, que líamos com gosto, e logo administrou uma ducha fria: "Leopardi era bom poeta, mas não um grande". "Por quê?", perguntamos.
Ele explicou: "Leopardi, em sua breve existência, cantou a juventude que passa rápido demais, a morte que se aproxima, a natureza que não é uma mãe amorosa, o infinito no qual descobrimos nossa insignificância, a vida que não responde às promessas que ela nos fez quando éramos crianças. Vocês gostam de seus poemas porque essas são as questões preferidas pelos adolescentes e por todos os que não conseguem enxergar e amar a vida concreta".
A vida concreta, para ele, era o mundo -desde "as mulheres, os cavalheiros, as armas, os amores" até o pipoqueiro na esquina. Também segundo ele, para justificar a existência desse mundo concreto (grandioso ou trivial, feio ou bonito), bastava a revelação de seu charme, de sua "poesia".
Pois bem, Malick (ou seu narrador) é assombrado pelas lembranças (que ele apresenta admiravelmente) da brutalidade de seu pai, da morte de seu irmão etc. Problema: como não perder de vista Deus e o sentido do mundo diante das inexplicáveis injustiças divinas?
Solução: tente contar sua história começando pelo Bing Bang e passe pelas águas-vivas, pelos dinossauros, pelo meteorito que os extinguiu, até chegar a você. Depois de uma hora de erupções vulcânicas e frêmitos de células no estilo "National Geographic" (com uma trilha sonora na qual Justine, a protagonista de "Melancolia", diria que só falta a nona de Beethoven), tudo fará sentido: a morte dos que você ama, o mal que Deus permite e o que você cometeu parecerão participar do milagre que são a existência do universo, a árvore da vida e o plano divino. Aleluia!
Problema: no fim, o mundo concreto terá sido justificado por uma transcendência (a mão de Deus no grande esquema das coisas). Isso é ótimo para um ensaio ou para uma pregação. Para a arte e a poesia, melhor esperar o fim da adolescência e repassar, diria o professor Massariello.
Eu tinha o receio de que "Melancolia", de Lars von Trier, fosse uma espécie de inverso simétrico do filme de Malick: uma meditação sobre a gratuidade da nossa existência, que talvez Massariello achasse tão adolescente quanto "A Árvore da Vida". Mas não foi nada disso.
Parêntese: vários comentadores declaram que se trata de um filme sobre o mal de hoje, a depressão, só que esta não é a doença do nosso tempo, e sim, sobretudo, uma doença que nosso tempo gosta de diagnosticar porque acha que encontrou a pílula certa para curá-la.
Continuando, o mal do qual sofre Justine consiste em perder interesse pela vida concreta, a ponto de não tolerar o que lhe parece ser a farsa de sua própria festa de casamento.


Em geral, esse cinismo cético é fruto de 1) uma consciência moral terrível, pela qual toda experiência concreta, sobretudo se for prazerosa, deve ser culpada ou 2) uma extrema insegurança compensada por uma exaltação narcisista; assim: sou o único a "perceber" que tudo é falso -com isso, sou superior aos outros, ninguém me engana. Essa posição é frequente na adolescência; pense no jovem que, no baile, desesperado por não conseguir se integrar, fica sentado denunciando mentalmente a impostura e os simulacros na valsa dos que dançam.
Nota. A mãe de Justine é clinicamente perfeita. Passando pelo crivo de seu sarcasmo, tudo é apenas hipocrisia: não sobra um mundo no qual a gente possa querer encontrar um lugar.
No "Nascimento da Tragédia", Nietzsche conta que Sileno, companheiro de Dionísio, tendo que responder à pergunta "O que é melhor para o homem?", disse: "O melhor de tudo é inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser".
Nietzsche simpatizava com Sileno e não recorria a transcendências (divinas ou não) para justificar o mundo. Sua solução era que a vida se justificasse pela arte ou, como dizia Massariello, pelo charme que a poesia lhe confere.
Bom, Von Trier conseguiu dar sentido (e charme) ao fundo do poço. Não perca.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1808201121.htm